sexta-feira, outubro 06, 2006

Velório

Quando eu morrer não quero missas, nem nem flores, nem caixão ultra moderno, nem lenço bordado em cima da cara. Às hipócrisias já sei que não poderei fugir, aqueles que em vida não se importaram e na hora da morte lá estarão, concerteza, nem que seja para fincar o pé e pensar "eu ainda cá estou, ganhei-te uma vez mais". Mas àqueles pormenores mais religiosos que me irritam sobremaneira, hei-de escapar. Nem beatas a chorar, nem padre a pregar. Já oiço os sobreviventes da ala mais conservadora da familia "Credo, se isto é maneira de se apresentar ao Mundo pela última vez... nem uma missa para lhe descansar a alma... cruz credo, ainda nos há-de perseguir à noite implorando a do sétimo dia... Deus me livre e guarde de um fim assim..."
No velório há-de ser servido vodka polaco com limão e hortelã, bem forte, e obrigatório para quem quiser vir ter comigo para o último adeus. Quanto mais tempo permanecer na sala, mais vodkas vai ter de beber, tipo parquimetro. Chegará ao ponto de haver apenas pessoas bêbedas e trapalhonas, sem espaço para o habitual roteiro familiar "vá para fora cá dentro" no qual se discutiria linhagem e problemas familiares, teses várias sobre o motivo da morte, e as merdas do costume. Um velório simples. E quem não aguentar, pode descansar.
Podem poupar uns euros valentes nas flores que evitarão comprar. Não existe negócio mais podre que esse, dar flores a quem não as poderá jamais cheirar. Para além de que, se efectivamente pudesse apreciar o seu perfume, passadas umas horas torna-se um pivete inacreditável. Quase um sublinhar: estás MESMO morta; ou para quem fica: yep, foi desta para melhor. E em relação àqueles, que nem vale a pena referir os nomes, que vão insistir, e refilar, e exaltar-se, e discutir, porque é forçoso que eu tenha um funeral decente com um santo padre e tal, remeto-vos para a vida real: falem com quem quiserem, libertem vocês a vossa alma, acreditem no que quiserem. Eu por mim, à terra voltarei, sim senhor, mas nem mais uma ladainha.

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